quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Capítulo 5 - Únicos (Alice's POV)

Nos últimos dias, a quantidade de animais foi muito maior do que antes. Agora vinham em grupos, a maioria mais de dez, nos deixando incapacitados de lutar, nos levando a correr, correr e correr. Era realmente estranho. Sempre encontrávamos poucos, dois ou três juntos no açougue de um supermercado, na escuridão de becos e casas abandonadas, mas nunca mais de dez, nunca. E agora eles eram atraídos a nós, mais desvairados do que nunca foram.

- Talvez seja o nosso cheiro. – Miguel disse me despertando de especulações básicas, e cheirando sua camisa que parecia ter semanas. – Estou cheirando a sangue puro, ugh.

- Mas – resolvi por meus pensamentos em prática, talvez ele me ajudasse. – e se eles estão ficando mais fortes? Mais sensíveis a cheiro, e visão? Lembra como não saiam muito quando fazia sol? Agora eles saem.

Ele tornou uma face pensativa, encarando os fatos.

- Não me surpreendo. Eles devem ter consumido o estoque de carnes bovinas da cidade inteira!

Limitei-me a acenar com a cabeça. Eu não tinha certeza de nada, muito menos ele. Estávamos saindo da cidade, em uma estrada mais deserta do que, antigamente, poderia existir. Podíamos estar andando por horas e eu não perceberia. Perdi a noção do tempo completamente, talvez porque não importava mais. Talvez porque não queria. Talvez porque o tempo não existisse mais.

A dor ardida dos arranhados desde o acontecido na “Mansão da Sílvia” nunca pararam. Eu já tinha percebido o quão problemáticos eles ficaram – até porque, depois de tantos dias, eles não cicatrizavam, e continuavam a sangrar sem parar – mas é claro que Miguel não sabia. Eu não precisava de alguém se importando comigo, eu não precisava de ninguém ligando para meu estado.

Mesmo assim, naquele momento, no meio do nada, eu não agüentei mais esconder. Por baixos da minha blusa de mangas longas, as feridas pareciam rasgar mais minha pele, corroendo meu auto controle, me deixando fraca, e eu não pude me impedir de gritar. Para mim mesma, foi o grito mais horripilante que já ouvira, mesmo que nesses meses (é, já deviam ser meses) a única música eram os berros famintos dos animais.

Manchas de sangue encobriram o tecido de meus ombros, e eu gritei novamente. Ardia, parecia nunca acabar, queimava minha pele. Cai sem forças nos chão.

Uma garota de 16 anos não devia passar por isso. Não devia correr para salvar sua vida, não devia não ter esperança. Era demais para mim e meu sistema nervosa. Toda a pressão, e ainda feridas.

Na mesma hora, Miguel me segurou, com uma clara expressão de choque nos olhos. Parecia não saber o que fazer no primeiro momento, parecia estar morrendo de medo de ser meu fim. Com um pouco de dúvida explícita, ele rasgou facilmente as mangas de minha camiseta para analisar os cortes, e sua expressão não fora nada agradável. Me olhou com desaprovação, e uma fúria se construindo nas beiradas do raciocínio.

- Porque não me contou? – ele parecia curioso pelo porque de minha atitude.

- Na nossa situação, fazer você se importar com mais isso ia ser puro egoísmo.

Ele pareceu incrédulo.

- Essa é a maior besteira que eu já ouvi! – bufou com uma desaprovação mais do que aparente e voltou seus olhos para minhas feridas abertas, que transbordavam de sangue. Estendeu a mão para a mochila e pegou um pano que aparentava estar limpo. Eu sabia que só aparentava.

Ficamos em um silêncio agradável por um tempo. Olhava ao redor daquele imenso lugar coberto pelo sol, aquela estrada vazia, e só nós dois, sentados no meio dela. Uma brisa muito leve jogou meu cabelo para trás, e a solidão se apossou de mim.

- Você acha que podemos ser... os últimos?

Ele parou de limpar minhas feridas, e seus olhos ficaram sem foco por um momento, não vendo ao certo meu braço a sua frente. Perdido em pensamentos, como sempre, como eu. Eu jurei ter visto um brilho em seus olhos; uma pequena fração de água em excesso querendo transbordar de seus olhos. Quando ele finalmente falou, era decidido, confiante.

- Há esperança. Eu vou tirar agente dessa.

Suspirei. Eu queria chorar. Eu queria fazer um escândalo. Eu queria mandar para o inferno a máscara de apática, de frieza, de sem interesse. Eu não agüentava mais um minuto ser ameaçada de morte. A decidida fala dele me impediu disso. Eu era fraca demais aqui dentro.

Ele rasgou o pano em dois e amarrou em duas feridas, estacando o sangue. Levantou-se e estendeu a mão em ajuda para me levantar. Segurei sem hesitar.

- Quando chegarmos a alguma cidade, vou pegar na farmácia coisas para seus machucados.

- É claro, Sr. Me Preocupo Com Qualquer Merda.

Ele riu exultante; toda a ironia voltara. Que se dane as máscaras, eu agüento mais um pouco.

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