segunda-feira, 13 de abril de 2009

Capítulo 9 - Fome (Alice's POV)

Ele sabe, ele sabe, ele sabe, dizia uma voz em minha cabeça. Miguel sabe, Miguel percebeu, ele vai correr de você, ele vai te deixar...
E talvez fosse verdade. Ele já devia ter percebido como eu não olhava mais em seus olhos e escondia os meus na cara dura. Também devia ter desconfiado eu querer passar em alguma ótica tão necessariamente. Lentes para que? Ele diria. Olha bem para os meus olhos, babaca.
...Com certeza não daria certo.
Acordei de meu mergulho mental e me fixei na estrada suja à minha frente. Poças de sangue não coagulavam mais nas ruas, e o cheiro era mais forte do que nunca.
E eu estava morrendo de fome. Não era a fome normal, até porque de manhã Miguel tinha preparado alguma coisa para nós, mas aquilo não me saciava, não tinha mais gosto. Minhas veias, meu estômago e meus músculos sentiam uma fome tão diferente, e doía tanto...
“Ali tem a ótica que você queria.” Disse ele, de repente, me assustando.
Tomando cuidado para não olhar para ele, resmunguei.
“Err, vá achar mais comida, que eu vou dar uma volta por lá... para ver se, se, se encontro o que quero.” E saí correndo até a ótica.
“Toma cuidado” ouvi Miguel gritar ao longe, quando minhas mãos com pele descascada estavam na maçaneta.
As luzes do estabelecimento estavam falhando, mas era deserto ali. O cheiro de sangue vinha das janelas. Nem um bicho tinha entrado ali.
Fui meio desconfiado até o balcão dos fundos, onde geralmente eram guardadas as coisas mais valiosas ou mais cuidadosas – a mini fábrica de óculos de grau, as lentes de contato, os documentos e certificados de garantia.
Achando as lentes, escolhi as marrons e tomando coragem, olhei-me no espelho, equilibrando a pequenina gosma escura em meu dedo. Mirei em meu olho esquerdo e coloquei, ajeitando. Pisquei, e quando me senti segura para encarar aquele olhar idiota e bobão que sempre tive, abri os olhos.
Nada marrom predominava minha retina. Era como se eu nunca tivesse colocado a lente.
Peguei outra lente e coloquei no olho de novo, mantendo-o aberto.
E eu vi. Eu vi a lente... Derreter, se diluir, o marrom sumindo, o vermelho aparecendo...
Ah meu Deus.
“Mas o que...”.
Virei-me tremendo para a voz de Miguel, abaixando a cabeça.
“Se vamos morrer em breve, queria fazer um experimento.” Falei, com as cordas vocais não funcionando, enquanto passava por ele. Tinha falado a primeira coisa em minha cabeça.
“E eu posso saber qual era?” Ele estava furioso, era quase palpável, mas eu não iria me virar por nada.
“Nada.” Gritei já na porta, e a escancarei.
Ali, contei rapidamente 20 filhos-da-puta. Qual é, eu podia muito bem estar me tornando um deles, mas ainda tinha medo.
“Miguel!” gritei não olhando para trás, não por esconder minhas pupilas, e sim pelo medo ter me tornado uma estátua.
“O que?” a voz dele vinha de muito atrás – ele não tinha saído do balcão traseiro. “AI!” veio logo depois de ter ouvido uma pele minúscula sendo rasgada, e algo quente e suculento transbordar.
Depois disso, tudo pareceu correr.
Os vermes na porta espernearam por fome, e de dentro de meus pulmões um bolo se formou, transformando-se num rosnado, que se escancarou em minha boca. Todos os parasitas se assustaram e correram débilmente, mas minha mente estava focada em apenas uma coisa.
Quando virei-me, eu vi. O sangue saindo em baldes do pequeno corte no dedo de Miguel. As células – se é que eu ainda as tinha – queimaram minha glicose, me levando até a fonte de força.
A segunda coisa que vi, enquanto corria para o líquido fervente escarlate à minha frente, foi a máscara de espanto no rosto de Miguel.
Ele estava apavorado. Seus olhos estavam arregalados, a boca retorcida em horror. Medo de mim, medo do que eu me tornara, medo de morrer.
Então tudo acabou.
A fome sumiu. O sangue não chamava mais atenção. Minhas pernas tremiam. Meus olhos inundaram-se.
O que diabos estava acontecendo?
No segundo seguinte, eu estava correndo para fora da ótica com minhas forças velhas, com o destino traçado para nunca mais rever Miguel.
Agora é só você nessa, amigão.

Capítulo 8 - Mudanças (Alice's POV)

A noite estava serena. O antigo barulho dos grilos me fazia falta, eu nunca mais os ouvia. As estrelas, mais fracas agora, tentavam conquistar seu brilho na imensidão galáctica coberta por nuvens. Os gritos estavam longe agora. Até que enfim tínhamos encontrado um lugar com paz.
Miguel, ao contrário de mim, conseguia dormir. Sua testa não parava de ficar franzida nem quando sua mente descansava. Pelo menos a dele descansava.
As feridas, antigas e novas, ardiam intensamente, e o sangue nunca estacava. Às vezes elas coçavam, ah é, coçavam muito mesmo.
Encarei-me nos pedaços sobreviventes de um espelho ali presente, e não me reconheci. O medo e a surpresa percorreram todas as minhas veias, sentindo tudo queimar, mas a pessoa no espelho continuava pálida. A pele, com todos os arranhados em péssimo estado, infectados agora, era pálida e estava escamando. Passei a ponta dos dedos em minha bochecha e uma fina camada de pele seca se grudou aos meus dedos. O horror fez minha cabeça girar. Meus dedos penteavam compulsivamente a raiz do cabelo e fios se desprenderam em uma quantidade absurda.
O pânico se apossou de mim, e me senti caindo. Afundei no velho piso de madeira ruim do lugar, recusando-me de olhar para tal criatura no reflexo.
O que diabos estava acontecendo?
Repentinamente, um zumbido muito alto aparece em minha orelha direita. Quando o zumbido se afastou, meus olhos perseguiram furtivamente o criador dele, e se focaram em uma pequena criaturinha nas sombras. Uma mosca? Ela não seria capaz de fazer um barulho tão alto!
Meus olhos saltaram diretamente onde ela se alojava agora, e sem minha permissão, consegui ver cada detalhe do pequeno inseto que estava à cerca de cinco metros a cima de minha cabeça.
As mãos abafaram o grito que se formou em minha garganta.
Eu tinha visto uma mosca de perto. Mais perto do que qualquer olho...
Mais perto do que qualquer olho humano poderia ver.
Encostei minha cabeça nas mãos e as lágrimas vieram em grandes quantidades, inundando minhas bochechas. Em minha cabeça, as únicas coisas que se repetiam eram Eu não sou um deles Eu não sou um deles Eu não sou um deles Eu não sou um deles Eu não sou um deles Eu não sou um deles Eu não sou um deles Eu não sou um deles...

Quando acordei, sentia meus olhos inchados. O sol que eu nunca mais tinha visto reinava no horizonte, trazendo raios alaranjados para dentro do quarto. Miguel não estava mais na cama, e eu tinha dormido no chão, embaixo da janela. Quando retirei as mãos do rosto, percebia as escamas ali, as que saíram de minha própria face, e me descobri coberta por um lençol velho.
Levantei-me, ignorando a repulsa que sentia por mim mesma, e vesti as roupas parcialmente limpas que tínhamos encontrado na casa. As roupas de combate estavam em estado degradante. Parei por um momento, me lembrando das lembranças horríveis do que tinha visto na noite anterior.
O que eu faria agora?
Eu poderia botar em risco a vida de Miguel...
Um calafrio percorreu minha espinha. Balancei a cabeça, afastando o pensamento, e me dirigi à escada, desviando de qualquer coisa que pudesse mostrar meu próprio reflexo. Perto dos lances de escada, peguei as fitas e enrolei meus braços onde os arranhados estavam sangrando e desci em direção a cozinha.
Miguel estava pegando toda a comida do lugar e colocando nas sacolas. Temperos, comidas prontas, congeladas, pacotes de bolachas e chocolates. Comecei a encher as garrafas de água.
- Pensei que iríamos ficar um pouco mais aqui – disse, e suspirei. Tinha gostado um pouco da paz daqui, tirando a descoberta de noite.
- Eu os vi hoje. Não são mais tão sensíveis ao calor do sol, mas parece que os incomoda um pouco. Eles sentiram nosso cheiro já.
Só se for o seu, pensei, mas não disse, porque, sabe Miguel, já percebeu que eu poderia matá-lo a qualquer momento? Os arranhões deram belos estragos...
Eu não sou eles Eu não sou eles Eu não sou eles Eu não sou eles Eu não sou eles. Tive vontade de me bater naquele momento. Eu não ia virar um ser como aqueles canibais, pelo amor de Deus! Os arranhões não paravam de sangrar por serem fundos demais, e minha pele e cabelo eram resultados da má alimentação, não descansar cotidianamente, correr o tempo todo.
Não tinha problema nenhum com isso. Talvez até Miguel estivesse assim.
- Alice? Alice? – ele me chamava, repetidamente, e percebi que tinha estado desligada. – Está me assustando. Dá para pegar as mochilas e sairmos daqui? Anda logo.
- Hmm, é, tá. – E fui confusa até o pé da escada, onde minha mochila estava.
Não percebendo a presença do espelho ali perto, me virei, e o monstro voltou a minha visão.
Menos de um segundo depois, eu estava correndo para a porta, com uma imagem grotesca em minha mente, onde ficaria presa por toda a minha vida.
Meus olhos castanhos, agora, tinha se avermelhado, e o tom escarlate quase predominava.