Tudo era vermelho.
Ainda não tinha visto nada que parecesse me saciar, mas minha visão era detalhista. Como um grande telescópio, eu podia aumentar meu campo de visão infinitamente. E tudo tinha uma camada avermelhada, como usar lentes vermelhas.
Acho que o pior de tudo aquilo, tirando o frio, o cansaço de tanto correr – menor do que o cansaço quando humana – e o medo, eu estava faminta. Parecia que minha mente gritava por não encontrar nada para me alimentar.
E ainda sim só pensava em Miguel.
Queria saber como e onde ele estava, se corria dos vermes – de mim -, se estava bem, com fome ou cansado. O que pensava de mim, se pensava em mim.
Fiquei imaginando que talvez ele fosse o único humano sobrevivente, mas aquilo parecia fazer tudo pior.
Se eu tivesse tido mais cuidado... Eu poderia ainda estar com Miguel. Ajudá-lo, ter esperança. É, essa já estava perdida.
Continuei caminhando, com uma parte de mim procurando ele, e a outra, procurando comida.
Ou talvez essas duas partes fôssemos consideradas as mesmas?
Estremeci com a realidade.
Em todo o meu percurso, vários “zumbis” passavam por mim. Seus olhos não tinham mais a fome, a cor vermelha tão vivaz. Andavam rastejando-se, desesperados, secos. Uns pareciam secar ao sol no chão, deixando o corpo sem vida, a poeira. Aqueles seres pareciam morrer sem se alimentar. Só não sabia se ficava feliz ou triste, porque aquele era o meu próprio futuro.
Entrei em uma rua, aparentemente vazia, para descansar. Apoiei-me na parede para respirar, acalmar meus nervos. Olhei para meus braços e estavam todo descascados. A pele de baixo era morta. Meus lábios estavam em carne crua. Fios de cabelo desprendiam-se de meu coro cabeludo sem parar. A boca já não abrigava saliva, muito menos dentes – eram garras. A transformação me assustava muito.
De repente, já descansada, uma coisa eu não podia deixar de notar.
O silêncio.
Mesmo enquanto os parasitas estão a ponto de morrer, eles soltam ruídos, estremecem, gritando de repente. Ali, era só o vácuo da falta de barulhos.
Voltando pela rua onde estava, observei que nada ao meu redor parecia o mesmo – era apenas uma cidade abandonada. Não uma cidade abandonada e ao mesmo tempo cheia de predadores famintos.
O único barulho que quebrava a perfeição era a minha respiração agitada e o vento sutil.
E foi quando um deles caiu sobre meus pés, implorando por algo. Gritava, esperneava por sangue, por carne, por humanos. Se estão tão secos, tão sem vida, ninguém havia sobrevivido?
E se Miguel fora servido de alimento para um deles?
Lágrimas alojaram-se em meus olhos, mas não eram sais, era o sangue que ainda existia em meu ser. Um sangue não mais vermelho – um sangue negro. Gritei até minhas forças se acabarem. Não queria ter meu fim daquele jeito, ardendo sob o sol, enquanto virava pó, sem ter salvado meu melhor amigo. O deixado para trás. Aquilo me doía mais do que a fome.
Olhei para meus pés e onde abrigava um ser faminto só restava sua poeira e restos mortais.
Ouvi passos. Meus sentidos predadores alertaram-me antes do som chegar à consciência. Seguindo meus instintos, procurei a direção dos passos, com ele o leve sabor de sangue.
E a última coisa que senti foi uma dor metálica na cabeça e o céu estendendo-se claro aos meus olhos, enquanto caía lentamente no chão e desmaiava.
sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010
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