segunda-feira, 13 de abril de 2009

Capítulo 8 - Mudanças (Alice's POV)

A noite estava serena. O antigo barulho dos grilos me fazia falta, eu nunca mais os ouvia. As estrelas, mais fracas agora, tentavam conquistar seu brilho na imensidão galáctica coberta por nuvens. Os gritos estavam longe agora. Até que enfim tínhamos encontrado um lugar com paz.
Miguel, ao contrário de mim, conseguia dormir. Sua testa não parava de ficar franzida nem quando sua mente descansava. Pelo menos a dele descansava.
As feridas, antigas e novas, ardiam intensamente, e o sangue nunca estacava. Às vezes elas coçavam, ah é, coçavam muito mesmo.
Encarei-me nos pedaços sobreviventes de um espelho ali presente, e não me reconheci. O medo e a surpresa percorreram todas as minhas veias, sentindo tudo queimar, mas a pessoa no espelho continuava pálida. A pele, com todos os arranhados em péssimo estado, infectados agora, era pálida e estava escamando. Passei a ponta dos dedos em minha bochecha e uma fina camada de pele seca se grudou aos meus dedos. O horror fez minha cabeça girar. Meus dedos penteavam compulsivamente a raiz do cabelo e fios se desprenderam em uma quantidade absurda.
O pânico se apossou de mim, e me senti caindo. Afundei no velho piso de madeira ruim do lugar, recusando-me de olhar para tal criatura no reflexo.
O que diabos estava acontecendo?
Repentinamente, um zumbido muito alto aparece em minha orelha direita. Quando o zumbido se afastou, meus olhos perseguiram furtivamente o criador dele, e se focaram em uma pequena criaturinha nas sombras. Uma mosca? Ela não seria capaz de fazer um barulho tão alto!
Meus olhos saltaram diretamente onde ela se alojava agora, e sem minha permissão, consegui ver cada detalhe do pequeno inseto que estava à cerca de cinco metros a cima de minha cabeça.
As mãos abafaram o grito que se formou em minha garganta.
Eu tinha visto uma mosca de perto. Mais perto do que qualquer olho...
Mais perto do que qualquer olho humano poderia ver.
Encostei minha cabeça nas mãos e as lágrimas vieram em grandes quantidades, inundando minhas bochechas. Em minha cabeça, as únicas coisas que se repetiam eram Eu não sou um deles Eu não sou um deles Eu não sou um deles Eu não sou um deles Eu não sou um deles Eu não sou um deles Eu não sou um deles Eu não sou um deles...

Quando acordei, sentia meus olhos inchados. O sol que eu nunca mais tinha visto reinava no horizonte, trazendo raios alaranjados para dentro do quarto. Miguel não estava mais na cama, e eu tinha dormido no chão, embaixo da janela. Quando retirei as mãos do rosto, percebia as escamas ali, as que saíram de minha própria face, e me descobri coberta por um lençol velho.
Levantei-me, ignorando a repulsa que sentia por mim mesma, e vesti as roupas parcialmente limpas que tínhamos encontrado na casa. As roupas de combate estavam em estado degradante. Parei por um momento, me lembrando das lembranças horríveis do que tinha visto na noite anterior.
O que eu faria agora?
Eu poderia botar em risco a vida de Miguel...
Um calafrio percorreu minha espinha. Balancei a cabeça, afastando o pensamento, e me dirigi à escada, desviando de qualquer coisa que pudesse mostrar meu próprio reflexo. Perto dos lances de escada, peguei as fitas e enrolei meus braços onde os arranhados estavam sangrando e desci em direção a cozinha.
Miguel estava pegando toda a comida do lugar e colocando nas sacolas. Temperos, comidas prontas, congeladas, pacotes de bolachas e chocolates. Comecei a encher as garrafas de água.
- Pensei que iríamos ficar um pouco mais aqui – disse, e suspirei. Tinha gostado um pouco da paz daqui, tirando a descoberta de noite.
- Eu os vi hoje. Não são mais tão sensíveis ao calor do sol, mas parece que os incomoda um pouco. Eles sentiram nosso cheiro já.
Só se for o seu, pensei, mas não disse, porque, sabe Miguel, já percebeu que eu poderia matá-lo a qualquer momento? Os arranhões deram belos estragos...
Eu não sou eles Eu não sou eles Eu não sou eles Eu não sou eles Eu não sou eles. Tive vontade de me bater naquele momento. Eu não ia virar um ser como aqueles canibais, pelo amor de Deus! Os arranhões não paravam de sangrar por serem fundos demais, e minha pele e cabelo eram resultados da má alimentação, não descansar cotidianamente, correr o tempo todo.
Não tinha problema nenhum com isso. Talvez até Miguel estivesse assim.
- Alice? Alice? – ele me chamava, repetidamente, e percebi que tinha estado desligada. – Está me assustando. Dá para pegar as mochilas e sairmos daqui? Anda logo.
- Hmm, é, tá. – E fui confusa até o pé da escada, onde minha mochila estava.
Não percebendo a presença do espelho ali perto, me virei, e o monstro voltou a minha visão.
Menos de um segundo depois, eu estava correndo para a porta, com uma imagem grotesca em minha mente, onde ficaria presa por toda a minha vida.
Meus olhos castanhos, agora, tinha se avermelhado, e o tom escarlate quase predominava.

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